quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O homem sem artifício

Do álbum "A mecânica do coração" (La mécanique du coeur, 2007) da banda francesa Dionysos, baseado no romance homônimo do vocalista Mathias Malzieu.

Por ser parte de um conto, um álbum-romance, O homem sem artifício conta a situação de Jack, um homem que nasceu no dia mais frio do mundo, tendo um coração gelado, incapaz de bater normalmente. Ele é salvo, então, pela doutora Madeleine, que se ocupará dele como que de um filho, e que põe um relógio no lugar de seu coração, para que as batidas, ajustadas, possam fazer Jack viver. 

Mas Jack encontrará pessoas, paisagens, imagens, enfim, em Andalousia, "o reino onde as mulheres olham direto nos olhos, sem óculos ou outro "'trucage'". E isto ameaçará seu coração de "homem-artifício"...





   
Eu sou apenas um artifício humano
Em viagem a Andalousia
O reino onde as paisagens se desenham como spaghettis westerns
Conta-se que nos Estados Unidos um vale morreu de ciúmes
De Andalousia e de seus spaghettis westerns

Andalousia, o reino onde as mulheres olham
Direto nos olhos
O sol
Sem óculos ou outro fingimento

...Direto nos olhos...

Eu sou apenas um fingimento humano
Que queria se tornar um homem de minha idade, sem artifício
O truque perfeito seria
Ser considerado um homem
Um verdadeiro, um grande, um ser humano, de minha idade

...Um humano sem artifício...

Eu sou apenas um truque humano
Eu cruzei, no meu caminho,
Com um humano sem artifício
Que sonhava com isto dia e noite:
Tornar-se um

No entanto, é ele quem me dá, ainda hoje,
A força e a vontade de permanecer, hoje, entre os outros humanos
Ainda e ainda eu agradeço a ele e aqueles que como ele
Laceram os céus com mil fogos sem artifício
Que desliza em uma cama um olhar

Que te bate no ombro, e diz: “vai”:

- Vai, salta, sobe, escala até teu coração!
Salva-te!
Não tenhas medo.
Escancara, meu pequeno!
É tempo de engolir um enorme sopro de ar fresco!

Andalousia
Anda anda
Andalousia
Anda anda
Andalousia
Anda anda...




terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Perfume e guaraná

Haverá ao menos um momento na tua vida em que metafísicas do cheiro te despertarão do sono dogmático da realidade. Um cheiro é como uma perspectiva. E estas são "las que cambian". Assim como as pessoas.

No meio de tanta gente sem nome, veio para mim um cheiro de perfume de alguém que não se sabe quem, mas que quis muito que aquele olor fosse sentido. E cheirava tão bem... era suave, simples. Veio junto com guaraná. Um ônibus em movimento, e o cheiro do guaraná de alguém misturado ao perfume de outro alguém te colocando num vôo direto para um mundo inteiro de possibilidades. Ali, sim, a roda-viva girava. 

É bastante possível então que aquilo se torne por alguns segundos como que o cheiro do sentido da vida. E ele parece com alguma coisa entre perfume cítrico e guaraná.

Neste dia dei-me conta exatamente disto: tão rápido quanto sai de sua percepção um cheiro ou uma mistura deles, pode uma ideia construir um mundo, um muro. Ou as duas coisas. Se for um muro, de um minuto a outro, o querer pode virar conteúdo de spray, e ser vaporizado noutra coisa. Exatamente como aquela ferramenta do editor de imagem que deixa a gente fazer o que no mundo das pessoas poderia muito bem já ter virado crime: poderíamos "copiar" um pouco de uma cor (e por que não de um alguém? de seu cheiro? ou do jeito de morder?) e depois espraiaaaaaaaaar onde quisesse, apertando a válvula do spray, e pichando tudo com aquele bisonho jato de gente. Com cuidado ou sem. E com espessuras diferentes.

Deste jeito é o querer.

Oui, mon ami, comme tu disais: tomber amoreux du monde entier.








segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Este é o lenço

...

"Este é o lenço de Marília para o amado.



Marília, que temeu o esperado
Marília, quem diria? - desapertado
Marília, tudo mudou, tudo vai - desengasgado
Que estando ou não estando, Marília, é malogrado 

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.


Este é o lenço de Marília
para o Amado.

De Cecília, de Marília e de Maria...

... Eis o que resta dos sonhos: um lenço deixado".


que nem toda Marília é de Dirceu.


Ver poema original de Cecília (porque para uma mulher, ainda mais como esta, o primeiro nome basta!)

Sobre a imagem

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Suave (ou, de Moby Dick e o início das inquietudes sobre a baleia e as imensidões do mar)

Epígrafe de H. Melville à etimologia [da baleia] "(fornecida por um falecido assistente, tuberculoso, de escola média)
[...]
O pobre assistente - puído no casaco, no coração, no corpo e no cérebro: eu o vejo agora. Estava sempre limpando seus velhos dicionários e gramáticas com um estranho lenço, zombeteiramente enfeitado com as alegres bandeiras de tôdas as nações conhecidas do mundo. Êle gostava de tirar o pó de suas velhas gramáticas: isso, de algum modo, fazia-o suavemente recordar-se de que era mortal"

***

O intenso dá sentido à existência. A questão é que, na maior parte do tempo, o intenso não está lá. O intenso é pontual, isolado. Não terá sido por isso que, desde as mais arcaicas e obscenas pinturas rupestres à contemporânea pintura abstrata, criamos a arte para tornar minimamente cotidiano o efêmero intenso da existência? Em meio ao intenso e a arte, super-homens puídos e sem escola sustentam a verdade como se fosse a pena da leveza do ser. E são.


domingo, 24 de março de 2013

Fake

Me dei conta de que quase nunca pensamos a mesma coisa sobre música, ouvir, fazer, falar dela. Música é uma coisa, letra outra. Claro. Aos caros amigos músicos, agradeço pelas horas de querela nesse sentido! hehe É que quando se faz música, a música vira outra coisa. 

Mas música e letra podem ser parte de um projeto só. Ainda mais: pode ter imagem e se tornar o que eu chamaria de um video-clip-arte-total numa consonância entre imagem, palavra e... música! É claro que no caso da canção de que falo aqui existe um elemento repetição, mas aí eu provavelmente teria de falar sobre música e eu não saberia...
É que às vezes a palavra vem atravessar a música com um conceito para que a gente se delicie com uma composta experiência estética.

E quando este conceito trata de artifício, artificialidade (falso?), eu já acho que, além de reunir tudo isso, este clip aqui embaixo é o que possivelmente num futuro distante poderiam considerar um "clássico" representativo do nosso tempo... Tudo bem, vai. Outra postagem para explicar quem somos "nós", sendo o mínimo os meus demônios interiores e o máximo, a humanidade inteira.
Ah! E outra postagem ainda para o tempo. 

FaKe PlAsTiC Trees do Radiohead:


Her green plastic watering can
For her fake Chinese rubber plant
In the fake plastic earth
That she bought from a rubber man
In a town full of rubber plans
To get rid of itself

It wears her out, it wears her out
It wears her out, it wears her out



She lives with a broken man
A cracked polystyrene man
Who just crumbles and burns
He used to do surgery
For girls in the eighties
But gravity always wins

It wears him out, it wears him out
It wears him out, it wears him out

She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love
But I can't help the feeling
I could blow through the ceiling
If I just turn and run

It wears me out, it wears me out
It wears me out, it wears me out

If I could be who you wanted
If I could be who you wanted all the time

All the time...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ainda o riso - Deméter e uma sexualidade que ri

O livro reúne livres interpretações de inspiração junguiana de histórias e narrativas arquetípicas sobre o feminino e suas expressões. Trata-se de Mulheres que correm com os lobos da poeta-psicanalista Clarissa Estès.

Presente de amiga rosa-leoa-loba-girafa :)

A leitura se encaminha para o final e já passei por um bocado de mulheres mexendo em si mesmas por dentro e por fora. A proposta-partida é excelente: mulheres e lobos têm um comportamento com semelhanças surpreendentes e pulsa nesta semelhança um elemento selvagem, alcançável apenas na aceitação de uma velha senhora "subterrânea" na psique, no río abajo río, aquela que chama e solicita, lá por debaixo de várias camadas de... Bem, poderiam ser camadas de qualquer coisa. Esta mulher é La que sabe.

Mas eu preciso mesmo é falar do capítulo 13, intitulado "O cio: a recuperação de uma sexualidade sagrada".
Conta-se que a deusa grega da terra, Deméter, caiu em depressão depois que sua filha desapareceu. Ela havia sido raptada por Hades, deus do inferno. A única coisa que consegue novamente animá-la, depois de tristes tempos de busca mal-sucedida pela filha, é uma outra mulher, ou "espécie de mulher" - Baubo, uma fêmea - que "não tinha nenhum tipo de cabeça, seus mamilos eram seus olhos e sua vulva era sua boca" que aparece dançando e contando piadas picantes até que consegue fazer Deméter rir. 
Assim acaba por reanimá-la mais uma vez. 

Para viver, talvez.

"Foi com essa
boquinha que ela começou a regalar Deméter com algumas piadas picantes e
engraçadas. Deméter começou a sorrir, depois deu um risinho abafado e em seguida
uma boa gargalhada. Juntas, as duas mulheres riram, a pequena deusa do ventre,
Baubo, e a poderosa deusa mãe da terra, Deméter."

Nada poderia ser melhor que isso, a não ser a história do "Coiote Dick", uma história dessas como a de Baubo, hein Clarissa? ;)
De toda maneira uma história que seria enforcada pela minha paráfrase. 

Bom divertimento:

"Era uma vez Coyote Dick, e ele era tanto a criatura mais esperta quanto a mais
tonta que jamais se podia esperar encontrar [...] Bem, um dia quando Coyote Dick estava dormindo, seu pênis ficou realmente
entediado e resolveu abandonar Coyote para viver sozinho uma aventura. Foi assim
que o pênis se soltou de Coyote Dick e saiu correndo pela estrada. Na realidade, ele
pulava pela estrada afora já que possuía só uma perna.
E ele foi pulando e pulando, e se divertindo até que saltou da estrada e entrou
na floresta, onde — Ah, não! — ele pulou direto numa moita de urtigas.
— Ai! — gritou ele. — Ai, ai, ai! — berrou ele. — Socorro! Socorro!
O barulho dessa gritaria toda acordou Coyote Dick e, quando ele estendeu a
mão para dar partida no coração com a manivela, como de costume, viu que ela não
estava mais lá. Coyote Dick saiu correndo pela estrada, segurando-se no meio das
pernas, e afinal encontrou seu pênis passando pela maior dificuldade que se pudesse
imaginar. Com grande delicadeza, Coyote Dick tirou seu pênis aventureiro do meio
das urtigas, acarinhou-o, tranqüilizou-o e o devolveu ao seu lugar certo.
Old Red ria como um louco, com acesso de tosse, olhos saltados e tudo o mais.
— Essa é a história do velho Coyote Dick.
— Você se esqueceu de contar o final — repreendeu-o Willowdean.
— Que final? Já contei o final — resmungou Old Red.
— Você se esqueceu de contar para ela o verdadeiro final da história, seu
porcaria.
— Ora, se você se lembra assim tão bem, então conte você mesma. — A
campainha tocou e ele se levantou da cadeira desconjuntada.
Willowdean olhou direto para mim, e seus olhos cintilavam.
— O final da história é a moral. — Nesse instante, Baubo apoderou-se de
Willowdean, pois ela começou a dar risinhos, a rir abertamente e afinal a gargalhar
tanto, e até com lágrimas, que levou dois minutos para conseguir dizer as duas
últimas frases, já que repetia cada palavra duas ou três vezes enquanto tentava
recuperar o fôlego.
— A moral é que, mesmo depois de Coyote Dick sair do meio das urtigas, elas
fizeram seu pau coçar feito louco para todo o sempre. E é por isso que os homens
estão sempre chegando perto das mulheres e querendo se esfregar nelas com aquele
olhar de "Estou com uma coceira". Pois é, aquele pau universal está coçando desde a
primeira vez que fugiu do dono.
Não sei o que deu em mim, mas ficamos ali sentadas na cozinha, rindo aos
guinchos e batendo na mesa até praticamente perdermos o controle dos músculos.
Depois, a sensação me pareceu semelhante àquela de ter comido um bom pedaço de
raiz-forte. É esse o tipo de história que eu realmente acho que Baubo contou. Seu
repertório inclui qualquer coisa que faça as mulheres rirem desse jeito, desenfreadas,
sem ligar para as amídalas aparecerem, com a barriga solta, com os seios balançando.
Há algo numa risada sexual que é diferente de uma risada sobre temas mais
educados. Uma risada "sexual" parece chegar longe e fundo na psique, sacudindo
todos os tipos de coisas, tocando nos nossos ossos e fazendo com que uma sensação
agradável corra por nosso corpo. Ela é uma forma de prazer selvagem que está à
vontade no repertório psíquico de qualquer mulher."

Ahhh... as boas morais!
sEM MAIS...

Referência:
ESTÈS, Clarrisa P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem.Rio de janeiro: Rocco, 1994. p.416-429.  

 



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

(Só) ou Que poeira leve


"Na vida, quem perde o telhado, em troca recebe as estrelas".


Começa assim uma linda música de Tom Zé, descoberta num momento muito significativo. O nome da música é "Solidão", e pode ser conferida em algum lugar aqui à direita, numa antológica gravação pro Ensaio da TV Cultura. Não. Não estou sozinha. Não mais que você que lê isso agora. Estou é desenraizando. Viver, além de muito perigoso, Guimarães, é uma dessas duas coisas: você está enraizando ou você está desenraizando. Há quem passe a vida a enraizar - semeador dedicado, húmus constante de matéria viva, casa, comida, roupa suja, cachorro parcelado em 12x no Visa e uma certeza inteira de residência fixa.

Capaz que uma boa metade dos mortais ocidentais creiam ser o curso "natural" da vida a penetração viva das certezas em terra firme e segura. Isso quer dizer que você nasce, cresce e, quando está prestes a reproduzir, passa também a "vencer na vida". Casa e vai pra casa, uma vez encontrada sua "alma gêmea" e o emprego dos seus sonhos. Trocar de carro, moto, jumento, macarrão de domingo com mãe, vó e as crianças.

Do lado de lá, estão os outros. Aqueles que "erram" e parecem persistir no erro: os incapazes de assumir a santa responsabilidade: loucos, malandros, artistas, bêbedos e mochileiros, flâneurs, nietzsches, artistas de rua, vagabundos, descasados, mães solteiras. Desenraizadores, enfim.

A bombordo ou estibordo seguimos na nau.

Será que ainda desenraízo?