segunda-feira, 26 de julho de 2010

Gratidão e loucura nos limites da cultura - sobre o ENCA (Encontro Nacional das Comunidades Alternativas)

A pior coisa que pode acontecer àquele que gosta demais do pensamento e confere a ele relevância extrema é o ceticismo. Nada contra esta veemente postura filosófica - o que seria de nossa ingenuidade sem a dúvida? Ou da nossa cultura sem a crítica, da resistência sem o questionamento? Mas o ceticismo tem uma perniciosa implicação existencial que está mais próxima de nós do que se poderia supor. Pense você agora em quantas vezes na vida foi capaz de sentir gratidão. Não como naquela vez em que, num dia de cansaço e preguiça cósmica você quis abraçar o entregador de pizza porque já grunhia de fome e não ousou se arrastar até a cozinha. Nem como daquela outra vez em que você descobriu que tinha um amigo quando precisou dele como da água e ele compareceu. Tampouco quando noutra ocasião em que você gastou o que não podia e comprou o melhor de todos os imagináveis presentes de dia das mães. Quando se sabe "por que" e “a quem” estar grato, é simples e comum sentir gratidão. Mas esta gratidão soa como uma obrigação. Acontece que um número grande de coisas ocorrem, coisas dessas que se explicam e dessas outras que não se explicam de jeito nenhum, e interferem e transformam e possibilitam nossa existência e pelas quais não nos vemos sentir gratidão. É aí que está um ceticismo cru, cinza e vazio, uma limitação que, buscando antes de tudo um por que, esquece que estar vivo é mesmo só um quase-milagre. Um quase-milagre que a gente não explica, não pergunta, não duvida. A gente cala, acha bom e agradece. Assim como quando se ri sem motivo. Não, não estou pirando (não mais do que o normal), nem entrando para uma seita religiosa. É que estive este fim de semana entre aqueles “malucos profissionais” que parecem ter percebido, assim num átimo, como ser atingido por um raio, que gratidão é melhor quando é simples gratidão. Eles se reúnem todos os anos, carregam consigo o mínimo possível, prioridade para as cores e formas do circo, os gestos e risos da pantomima, o básico para vestir e comer. Carregam o que não se pode carregar: o desprendimento. Eles vêm de vários lugares. Buscam um lugar minimamente propício, montam suas barracas e tendas, acomodam suas crianças, dividem o trabalho, estabelecem uma relação de amizade com a terra, a água, o fogo e o ar e chamam a isso tudo de Encontro Nacional das Comunidades Alternativas - ENCA. Acho que não preciso explicar o que é uma comunidade alternativa, mas se fosse o caso de dizer ao pé da letra, é assim como um jeitão de ser animal social, de fazer enxame mesmo, de unir forças e trocas (comunidade), mas de uma maneira muito diferente e paralela (daí o "alternativo") àquela que nós caras-pálidas fazemos aqui na velha selva de pedra. Sabe aqueles vagabundos, hippies, ciganos, circenses que não querem ovo, não metem a mão na massa, não entram no cabresto e no colarinho? Aqueles do sossego e sem papo de emprego? Os boas-vidas que não se preocupam com nada a não ser em descolar umzim? Pois é. Eles mesmo. Acontece que esse pessoal trabalha. Trabalham tanto que até pros que estão lá assim só charlando e vendo qual é, eles trabalham. E eles nem acham isso ruim. Porque não tem o pra quem e o por quê. O porquê é só a necessidade e o pra quem é todo mundo. E mais: eles estão preocupados! Minha nossa como se preocupam! Eles estão horrivelmente preocupados, estou com medo que desenvolvam uma úlcera de tanta preocupação. E a preocupação deles é o que os insere no limiar da natureza e da cultura. Eles estão exatamente lá no meio, entre o que faz deles seres humanos que talham, banham, montam, cortam, colhem, cozinham e o que os destaca da "civilização" e seus excessos. Em meio a tudo isso é difícil não acreditar em alguma coisa. Na loucura daqueles malucos. Não acreditar que o simples fato de se estar vivo, como um filho da terra, é motivo de gratidão serena. É como um tentar ser humano só assim o tantinho que se pode ser sem negar a “própria natureza”. Como se isto fosse possível. E como são humanos! Tolos, ingênuos e espertos como eles. Humildes e vaidosos. Eles têm suas leis e interdições. Eles não comem animais. Há quem diga que se alimentam de luz. Eles estão preocupados com a terra e sua ecologia. Eles não perdem noites preocupados em como pagar as contas no fim do mês, porque lá as contas têm de ser pagas a cada dia. Você toma e devolve, colhe e planta, suja e limpa, retira e devolve. Eles chamam a isso permacultura e morrem de medo de que outras pessoas não venham a perceber que trabalhar e transformar a natureza não é parasitá-la, e de que a terra venha a definhar. Eles comem e se espantam. Sim! O espanto deles vem de lembrar a cada vez que nada do que está no prato apareceu de graça,  por acaso, mas foi dado pela terra, cultivado, colhido, preparado, foi tra-ba-lha-do por alguém.
O espanto deles é um espanto natural. Eles chamam um ao outro “irmão”. Eles acham que é mais absurdo depender de ansiolítico do que nadar nu e cagar no mato. Eles não acreditam em Deus, mas sim em um bocado deles e dão a isso também vários nomes. À noite, eles dançam, loucos que são, em torno do fogo, eles brincam e fazem rir, eles cantam e tocam e oram. E eu, no meio de tudo aquilo, vi que lá fora de mim, lá no alto, também a lua se admirava e ficava para espiar, e sentir com eles a gratidão daqueles loucos.